terça-feira, 9 de junho de 2015

ATIVIDADES ENCERRADAS




O blog O Fabulista chegou ao fim! Os arquivos continuarão ativos. Agora vocês podem me seguir em meu novo blog Ricardo Escreve. É só clicar na imagem!  

sexta-feira, 5 de junho de 2015

A CRUELDADE DA NATUREZA




Em qualquer criação artística, a execução importa mais do que a ideia. Um tema banal pode resultar numa grande obra. Não que zumbis seja algo banal. Considero um tema perfeito, principalmente, como metáfora política. O filme clássico de George Romero, A Noite dos Mortos Vivos (1968), ainda é insuperável nesse sentido.




A representação dos zumbis mais em voga atualmente é a serie de televisão The Walking Dead. A série mostra um cenário em que a civilização chegou ao fim após os mortos começarem a reviver e a devorar os vivos. Então se dá uma luta pela sobrevivência a qualquer custo. A metáfora aqui é mais moral. Questiona-se a todo momento o que é certo ou errado dentro de uma visão de ética do antigo mundo, considerado civilizado.




No romance de M.R. Carey, na verdade o roteirista de quadrinhos Mike Carey, de títulos como Lucifer e O Inescrito, os zumbis também se mostram como uma ameaça ao estilo de vida e a maneira de pensar anteriores.

Numa Inglaterra devastada, dentro de uma base, um grupo de cientistas, militares e civis tenta viver com os restos materiais e emocionais do mundo que acabou. E há os nascidos depois do cataclismo, que apenas conhecem o que havia antes por meio dessas relíquias. No caso de Melanie, uma menina de dez anos, os livros. Principalmente sobre mitologia grega.

Melanie e outras crianças são mantidas confinadas enquanto são educadas por alguns professores. Elas são escoltadas para as aulas por soldados que apontam armas para suas cabeças. As crianças ficam amarradas o tempo todo.




Como eu disse antes, a execução de uma obra de arte é o que importa. Em A Menina que Tinha Dons, tudo é executado de maneira soberba. A ideia é bastante básica. Não vou contar o enredo para não estragar a experiência da leitura. Mas eu poderia resumi-lo em um parágrafo curto. Agora o brilho está em como o autor expandiu sua premissa.

Este não é um romance de terror típico. O horror não se dá por uma montanha russa de sustos baratos, e sim pelo o que há de repulsivo no comportamento humano. Outro atrativo é a mistura de beleza e crueldade na biologia da própria natureza. O aspecto científico é muito forte, o que às vezes pode cansar em descrições técnicas, mas que não deixa de ser fascinante.




O ritmo do romance também é outro. Há cenas de ação, mas são raras. Há muita tensão. Tudo se dá num ritmo mais lento. Acima de tudo, o romance é um estudo de personagens. O que leva o leitor a continuar virando as páginas é o desenvolvimento na jornada dos cincos protagonistas. Os insights que cada um tem mostram que também crianças ou pessoas mais brutas podem ser figuras complexas.

O texto foi escrito na terceira pessoa no tempo presente. O que pode aborrecer no início acaba sendo um recurso bastante justificável no contexto da trama. Passa-se bem a sensação de urgência, precariedade e incerteza.




O maior defeito do romance foi transformar a protagonista que representa a Ciência com jeito de cientista louca, que só vai piorando sua conduta ética durante o romance, terminando de forma quase caricata.

E uma das maiores qualidades é seu desfecho: imprevisível, inteligente e chocante.

A Rocco está de parabéns pela edição bem cuidada. Revisão acima da média, tipografia elegante e de fácil leitura, e papel amarelo de boa gramatura. A capa segue a versão em inglês, sendo emborrachada, gostosa de pegar. A tradução de Ryta Vinagre também está bastante competente.

Esse romance não vai agradar apenas aos fãs de terror, mas a qualquer leitor interessado em personagens muito bem desenvolvidos num mundo convincente e aterrador, justamente porque mostra um cenário possível para um futuro próximo.

A Menina que Tinha Dons, de M.R. Carey, 384 págs., Rocco (selo Fábrica 231)


            

quinta-feira, 28 de maio de 2015

quarta-feira, 27 de maio de 2015

SEGUNDO ROMANCE EM GESTAÇÃO



Terminei meu primeiro romance. E é a velha história: você só aprende fazendo. Em breve, ele sairá gratuitamente em várias plataformas. Estou mais confiante para encarar o próximo projeto, já em gestação. Como eu sou um "arquiteto", gosto de cuidar bem da pré-produção antes de sentar e escrever o texto. Será um romance juvenil envolvendo dois irmãos, uma menina e um menino negros, superpoderes, crise adolescente, racismo, bullying, quadrinhos, games, música pop, livros e mais da cultura nerd numa Salvador contemporânea. Esse vai rolar a versão física.

sábado, 23 de maio de 2015

ESTRADA DA FÚRIA, INSANO E DELICADO



(Esta resenha contém spoilers.)
Quando saiu a notícia de que fariam outro Mad Max, fiquei bastante cético. Mesmo com George Miller no comando da produção. Revitalizar franquias é o caminho mais fácil para tentar ganhar dinheiro. Pega-se uma marca conhecida por gente mais velha, e eis um incentivo para essa fatia do público voltar às salas de cinema, já que são os mais jovens que dominam as estatísticas de frequência há um bom tempo. Junte dois mais dois e as chances de ganhar uma gorda bilheteria aumentam.
Os problemas da produção só fizeram o sentimento de rejeição aumentar. Principalmente, atrasos nas filmagens. Miller teve de abandonar o cenário clássico dos filmes anteriores. Na época, chuvas torrenciais tornaram o árido Outback australiano numa região verde. Depois de correr o mundo em busca de novas locações, a produção foi para a Namíbia. As filmagens aconteceram em 2012, tendo que enfrentar o ambiente hostil do deserto africano. E em 2013 foi necessário rodar cenas adicionais. O nível de frustração e estresse da equipe era enorme. Era como se os caprichosos deuses do cinema estivessem conspirando contra o filme. A sensação era de que a insistência de George Miller em terminá-lo era um erro. Esse novo Mad Max não era para acontecer.


Mas Estrada da Fúria não surgiu do nada. Há quase vinte anos, Miller tentava tirá-lo do papel. O diretor teve a ideia de um 4º Mad Max enquanto dirigia por Los Angeles em 1998. Em 2001, ele tentou realizá-lo, ainda com Mel Gibson como protagonista, mas não deu certo. O 11 de Setembro e a crise financeira da época prejudicaram o financiamento do filme. Em 2003, Miller tentou mais uma vez, agora com dinheiro australiano. Mas a Guerra do Iraque fez os investidores recuarem por temerem controvérsias com conteúdo da obra. Miller jogou a toalha por um tempo. Foi fazer outras coisas. Produziu Babe, Um Porquinho Atrapalhado, e dirigiu Happy Feet. Miller até pensou em fazer o novo Mad Max como uma animação em 3D! Em 2009, ele contou com apoio da Warner para voltar com tudo e finalmente fazer Estrada da Fúria. Mas os problemas continuaram, agora já dentro da produção. Seis anos depois, o filme estava pronto.


Até agora estou besta como a Warner continuou bancando um projeto que não era nada no estilo Marvel ou Transformers, cujo orçamento só fazia crescer e a data de lançamento foi adiada várias vezes. A demora em entregar o filme não se deveu apenas aos problemas de produção. O estúdio deu liberdade para Miller trabalhar. Ele e seus colaboradores precisaram inventar equipamentos para serem usados especificamente no filme. E também Miller demorou bastante tempo na pós-produção, tunando seu bebê. A informação é de que a Warner ficou tão satisfeita com uma primeira versão do filme que continuou soltando dinheiro.
A divulgação do filme começou devagar, mostrando pouca coisa. Depois de tanto tempo de dúvidas, o contato inicial agradou. O primeiro trailer mostrava o universo pós-apocalíptico dos filmes anteriores atualizado e vibrante. Poderia dar certo. Mas ninguém estava preparado para o que veio a seguir. A sequência mais fantástica de trailers da última década, no mínimo. Depois detalhes da trama foram revelados. O principal era de que a franquia seria reinventada. As personagens femininas não seriam vítimas, e sim protagonistas. Falaram até que o filme seria feminista. Então, de um projeto desacreditado, Estrada da Fúria ganhou status de salvação para aqueles que já estavam cansados de ver produções de Hollywood sem criatividade e coragem de ousar, mesmo sendo praticamente um reboot de um ícone dos anos 1980.
Meu ceticismo de antes tinha se transformado quase numa euforia. Mas, no fundo, o ceticismo estava lá. Eu já estava cansado de ser enganado por trailers deslumbrantes de filmes medíocres. Até a data de lançamento nos EUA (no Brasil estreou depois), fiquei na expectativa do que diriam os críticos gringos. Acima de tudo, aqueles que eu respeito. Então veio a enxurrada de elogios. “Filme do ano.” “Filme de ação da década.” “Ficou complicado fazer filme de ação agora.” “Estrada da Fúria faz James Cameron se parecer com Brett Ratner.” Depois vieram os elogios dos críticos brasileiros na mesma pegada. Eu estava em êxtase. Mas ainda assim, com uma ponta de desconfiança. Afinal, toda unanimidade...


Estrada da Fúria é ao mesmo tempo insano e delicado. Fazia tempo que eu não me divertia tanto no cinema. Eu parecia uma criança que tinha acabado de ganhar um brinquedo novo. Estava fascinado com o que via, mas não entedia direito o que estava acontecendo, como funcionava. Porque o filme mal começa e já somos jogados direto na ação.
De cara, o que mais me fascinou, e continuou assim na maior parte do filme, foi a construção daquele universo, a lógica interna dele. E a cada elemento novo, esse fascínio aumentava. A produção inventiva e funcional deu corpo a ideias bastante loucas, onde a banalidade do mundo de hoje se torna a transcendência de amanhã. Quem imaginaria que a cultura de carros possantes poderia algum dia ganhar status de símbolo religioso. “V8! V8! V8!” Os veículos, as construções, as maquiagens, as vestimentas, as tatuagens, as deformações, tudo existe para um propósito: fazer com que o espectador acredite que aquele mundo existe de fato. Funcionou. Minha suspensão de descrença me acompanhou com o maior prazer nessa jornada.


A Cidadela comandada por Immortan Joe é uma sociedade complexa, onde cada um tem sua função determinada. Por ser uma sociedade da guerra, dominada por homens, sua classe mais orgulhosa e valorizada é a dos war boys, o exército de mutantes que assegura a defesa e provê os recursos para que o lugar exista em seu esplendor, num mundo onde domina a devastação. A grande sacada de Immortan Joe foi assegurar o controle e a infraestrutura da Cidadela em troca não por bens materiais, numa barganha rasteira, mercenária. Ele mantém todos os war boys no cabresto pela promessa do Valhala (o céu dos guerreiros na mitologia nórdica), do renascimento após a morte em combate. E como os war boys têm prazer em morrer! Só vendo o filme eu pude entender como os caras pintados de branco morriam sorrindo nos trailers.  


E nessa sociedade patriarcal, as mulheres não passam de parideiras e cães de guarda. O conflito começa justamente quando um grupo de mulheres decide se libertar desse destino perverso.
A partir daí, os caminhos de Max e Furiosa se cruzam de maneira bem acertada pelo roteiro. Um encontro que acontece pelas circunstâncias, quase por acaso, e é cheio de antipatias. De cara, Furiosa só não mata Max porque a arma encostada na garganta dele falha. Mesmo à contragosto, os dois percebem que precisam um do outro para fugir de tantos homens sanguinários em seus carros envenenados.


Antes do lançamento de Estrada da Fúria, a referência para filmes de ação era A Supremacia Bourne, de 2004, dirigido por Paul Greengrass e estrelado por Matt Damon. Sua revolução foi mostrar a ação de maneira mais realista, mais próxima dos acontecimentos, colocando a câmera na mão ou em lugares menos convencionais. Tudo potencializado pela montagem que era dinâmica, mas não era confusa, não era de videoclipe. Era uma montagem que tinha consistência, que tornava o desenvolvimento dos personagens e o avanço da trama mais interessante. Era uma coreografia de golpes e de carros em alta velocidade ou colidindo, que passava a sensação de dor, de intensidade física e mental. 


O ponto alto de cada filme da franquia Mad Max são as perseguições de carro, a aventura na estrada. E esse quarto filme é um sonho tornado realidade, porque praticamente todo ele é uma grande perseguição.
É como se Miller tivesse pegado os melhores elementos dos Mad Max anteriores para fazer uma versão definitiva. Então temos a atmosfera de terror, construída pela montagem, fotografia e trilha sonora do primeiro filme. O world building e o carisma dos personagens do segundo. E o tema da esperança do terceiro.


Miller está reinventando algo que ele mesmo criou: o road movie pós-apocalíptico,  um tipo de western futurista. O lançamento de Mad Max 2, também conhecido como The Road Warrior, foi um choque em 1981. Entrou para o time de sequências que mudaram profundamente os universos em que foram criados, como O Império Contra-Ataca e O Cavaleiro das Trevas. Mad Max se tornou um ícone pop. Fazer um Mad Max virou uma febre nos anos 80. Nenhuma imitação chegou perto do original, geralmente produções B. Nem mesmo produções mais recentes e caras, como O Livro de Eli.    
O que mais impressiona em Estrada da Fúria é o vigor de Miller, um senhor de 70 anos. Ele conseguiu a façanha de fazer um filme da velha guarda, mas também com cara de século 21, contando com antigos parceiros e com o talento de gente nova.  
A começar pela arte conceitual de Brendan McCarthy, o cara que criou no papel o visual desse mundo saído de um sonho louco compartilhado com Miller. Artista que veio dos quadrinhos, McCarthy tinha vinte anos de idade quando assistiu Mad Max 2 no cinema, várias vezes. Tornou-se fã. Ele fez storyboards para Tim Burton e David Lynch. Então Miller o contratou para Estrada da Fúria. Foram mais de dez anos de conversas com o diretor e muitos desenhos produzidos. Outros artistas contribuíram para a evolução do visual de Estrada da Fúria, mas foi McCarthy quem deu o norte.








Como seus colaboradores bem sabem, Miller gosta que tudo nos mundos criados por ele funcione de verdade. O que é uma dor de cabeça a mais para o homem que tornou na prática o universo de Estrada da Fúria viável. O designer de produção Colin Gibson e seu departamento de arte construíram os carros e caminhões.E até o veículo com tambores, amplificadores, carregando o cara cego de vermelho com sua guitarra cuspidora de fogo funciona; mesmo que o som dos tambores e da guitarra tenha sido colocado na pós-produção. Mas para Miller era importante que o troço funcionasse durante as filmagens para o dar o clima. 



Cerca de 90% dos efeitos do filme são visuais, práticos. E os muitos dublês chegaram ao limite de suas habilidades, coordenados pelo veterano Guy Norris.Entre os dublês estavam artistas do Cirque du Soleil e atletas olímpicos. A utilização de efeitos especiais é mínima, como por exemplo para apagar digitalmente os cabos que sustentam os dublês. O braço mecânico de Furiosa é real. Foi inserido no braço de Charlize Theron, usando uma luva verde, para ser apagado digitalmente. E seu braço amputado é um efeito elegante e sutil. Mas o CGI brilha mesmo na sequência de fuga na tempestade de areia. Além dos efeitos sonoros com roncos de motores, motos, explosões, metal contra metal, as intempéries da natureza e outros sons, que, aliados às imagens, me fizeram praticamente pular da cadeira, sorrir, dar risada, soltar palavrão e balançar a cabeça, confirmando como tudo aquilo que eu estava vendo e ouvindo era incrível.   


Miller tirou da aposentadoria o diretor de fotografia John Seale para trabalhar em Estrada da Fúria. Seale já tinha trabalhado em grandes produções, como Sociedade dos Poetas Mortos, Rain Man e O Paciente Inglês. Estrada da Fúria foi seu primeiro filme em digital, ao invés de película, com o uso de muitas câmeras ao mesmo tempo para rodar uma cena. Nunca vi na tela grande o deserto filmado de maneira tão bela, seja de dia ou à noite. As cores quentes e frias. As tomadas abertas, os closes. A movimentação das câmeras durante as perseguições, os lugares inusitados em que elas foram colocadas. Num trabalho conjunto entre filmagem e pós-produção, outro fator importante em Estrada da Fúria é a velocidade do filme. Um filme normalmente é rodado numa velocidade de 24 quadros por segundo. Em Estrada da Fúria, Miller reduzia essa velocidade quando queria que a ação ficasse mais clara para o espectador, sem a confusão de filmes como os da franquia Transformers. O diretor voltava à velocidade normal quando queria que as coisas se acelerassem, pretendendo assim manter o mistério de certos elementos e para evitar que a violência ficasse explícita, gore.   


Miller fez questão de que uma mulher editasse Estrada da Fúria. A escalada para transformar 480 horas de filmagem num filme de 120 minutos foi Margaret Sixel, esposa do diretor.Ela já havia montado outros filmes de Miller, como Babe 2  e Happy Feet. Mas nunca tinha trabalhado num filme de ação. Quando Sixel perguntou ao marido porque a queria em Estrada da Fúria, ele disse que, se fosse editado por um homem, o novo Mad Max seria como outro filme de ação qualquer. Agora Sixel entra para o time de montadoras que entendem muito bem do assunto, de mostrar adrenalina na tela. Mulheres também montaram Tubarão, filmes de Scorsese, de Tarantino, O Missão Impossível de J.J. Abrams e o vindouro Star Wars, Episódio VII. Segundo Sixel, o maior desafio foi fazer as melhores escolhas, quais cenas usar. Como os diálogos eram poucos, havia muito material só em imagens para contar a estória, as possibilidades eram infinitas. A montagem tem corte secos quando é preciso dar dinâmica à ação. E tomadas mais longas, aqueles segundos a mais tão preciosos para o desenvolvimento dos personagens.


Assim como os war boys de Immortan Joe são embalados por tambores e uma guitarra que cospe fogo, é a música de Junkie XL que dá a marcação para o espectador acompanhar essa jornada insana com sua trilha sonora que mistura potência e ternura. Ela é viciante. Todo grande filme tem uma trilha à altura. Uma identidade sonora. É só ouvirmos certos trechos da trilha para lembrarmos do filme.


Estrada da Fúria não teve um roteiro propriamente dito. A estória foi toda construída por meio de anotações e, principalmente, em imagens com storyboards e arte conceitual. Isso foi tão importante para a elaboração da trama que o artista Brendan McCarthy foi creditado como co-roteirista.
Em termos de roteiro, o que mais agradou em Estrada da Fúria foi que a lógica interna daquele universo era mais mostrada do que explicada. O drama se resolve durante a ação. Disseram que o filme não tem roteiro, que nada é explicado muito bem, inclusive sobre o passado dos personagens. Discordo. Passamos a conhecer os personagens pelo o que fazem e dizem. E isso é suficiente. Estrada da Fúria é como um filme de Hitchcock. A superfície da trama é rasa, as entrelinhas são profundas e o mise-en-scène torna algo que poderia ser medíocre numa obra de arte. Os filmes de Hitchcock na mão de um diretor de aluguel seriam meros filmes B. Assim como Estrada Fúria sem George Miller seria apenas um filme de ação.
Os roteiros da trilogia original sempre tiveram um desenvolvimento pobre. Diálogos ruins e a total falta de profundidade dos personagens eram compensados por uma direção talentosa e ousada, utilizando com muito acerto montagem, fotografia, música e direção de arte para criar uma atmosfera de terror e ação. Em Estrada da Fúria, essa atmosfera chegou ao ápice. O que há de novo é o maior cuidado de Miller com os personagens, mesmo com poucos diálogos. Na franquia Mad Max, a imagem importa mais do que a palavra.
Em Estrada da Fúria, vemos o melhor de dois mundos. Ele é um filme de diretor, na medida em que a excelência técnica é evidente. E também é um filme de ator, porque Miller conseguiu grandes performances do elenco, até nos menores papéis.
O Mad Max, de Mel Gibson é um ícone dos anos 1980, assim como o Exterminador, de Schwarzenegger e a Ripley, de Sigouney Weaver. Principalmente, devido ao segundo filme da franquia. Gibson ainda estava verde no primeiro Mad Max. Seu personagem era imaturo e até irritante. Mas no segundo, o personagem estava transformado em outro homem, mais experiente. Ele era um cavaleiro solitário, amargurado. Então o carisma de Gibson estava pronto para conquistar as plateias. O visual desgastado mas cool de sua roupa preta de couro com as mechas de cabelo grisalhas não saiu mais da cabeça dos fãs.




Tom Hardy tinha um trabalho ingrato. Não tanto por Mel Gibson, o ator, que atualmente é persona non grata em Hollywood, por causa da vida pessoal conturbada, virando sinônimo de racismo e misoginia. Mas pelo personagem Max Rockatansky. Hardy se saiu bem.
Seu Max não é uma emulação. É outro Max. Como se Estrada da Fúria fosse um filme de Mad Max num universo paralelo. Assim como o anterior, ele é um homem com um bom coração, mas que não pensa duas vezes em fazer coisas terríveis. Ele até faz os outros pensarem que não se importa com nada, apenas em sobreviver. Mas, no final, sua consciência pesa. E ele acaba fazendo o que acha certo.


A Furiosa, de Charlize Theron não é exatamente uma surpresa. A atriz já ganhou um Oscar por um personagem até mais exigente. Porém ela é a figura central de Estrada da Fúria. É ela quem começa o conflito da trama. Do ponto de vista narrativo, ela é a razão do filme existir.
Tom Hardy tinha a difícil tarefa de, pelo menos, não fazer feio encarnando um personagem icônico (e realmente ele fez um belo trabalho). Mas quem acabou criando um novo ícone foi Theron, com sua Furiosa.
Furiosa é quase tão lacônica quanto Max. Ela se expressa mais através da exigência física, seja dirigindo o caminhão de guerra, seja lutando com arma de fogo, ou mano a mano. O que mais fascina nela é o mistério. No filme, não é explicado como ela perdeu o braço. Nem como ela conseguiu o status de Imperatriz, um cargo de comando, naquela sociedade tão patriarcal. Só nos resta especular. Então se imagina que ela fez coisas terríveis no passado e que agora está farta disso. Sofreu e fez sofrer. Ao mesmo tempo, ela quer se redimir consigo mesma, dando esperança ao grupo de mulheres, às Cinco Esposas, que ela ajuda a fugir. Para completar, toda figura icônica tem um visual marcante. O de Furiosa, com a cabeça raspada, a pintura de guerra no rosto e o braço mecânico, não fica nada devendo para o visual do Mad Max, de Mel Gibson.


Furiosa é o personagem mais importante do filme. Mas é o Nux, de Nicolas Hoult que rouba a cena. É o único personagem que tem seu arco completo mostrado na tela, o que sofre as transformações mais profundas. De um war boy que faria qualquer barbaridade para agradar a Immortan Joe e assim assegurar seu lugar no Valhala, Nux percebe que pode realizar algo grandioso não em nome da tirania, mas em nome da vida. A jornada de libertação dele, do crente cego ao homem consciente e generoso, é executada de maneira tão hábil que dificilmente o espectador vai considerar essa mudança radical como forçada.   




O Immortan Joe, de Hugh Keays-Byrne já entrou para a galeria de vilões memoráveis (e ele já havia feito o vilão-mor Toecutter, do primeiro filme!). Seu visual é algo nunca antes visto no cinema, numa mistura de mistério e ameaça. É uma evolução dos antagonistas da trilogia original. Ele é o líder brutal não apenas de uma gangue, mas de toda uma sociedade. Sua figura é mais uma das metáforas que podemos extrair do filme. Ele se parece tanto com os tiranos da sociedade de consumo que oferecem o paraíso em troca da abnegação dos seus seguidores. Ele pode ser visto como um personagem bidimensional, a personificação de ideias: do machismo e do poder predatório. Mas é assustador quando vemos na vida real uma figura assim, como o ex-presidente George W. Bush e os membros do Estado Islâmico. Immortan Joe acaba sendo uma representação estilizada de tais figuras.  




Curioso ver a evolução das personagens femininas na franquia Mad Max.
No primeiro filme, elas são basicamente vítimas de todo tipo de violência, ou parceiras de maníacos. As únicas duas mulheres com alguma atitude não fazem muita coisa. Uma morre; a outra se mostra impotente ao de fato tentar salvar àquela. No segundo filme, as mulheres têm um papel mais decisivo na trama, incluindo uma guerreira de respeito entre o povo da refinaria, mas ainda ficam bem atrás do protagonismo dos homens. No terceiro filme, as mulheres crescem em relevância, sendo elementos cruciais na tese de que, no final das contas, são as mulheres que fazem a humanidade caminhar, tendo a personagem icônica de Tina Turner e a líder das crianças do deserto como encarnações disso. Agora no quarto filme, a presença das mulheres sofreu uma virada impressionante. Elas são a razão de ser da trama, o grande motor do conflito. Vemos, pela primeira vez, uma personagem como Furiosa, uma mulher tão louca e tão badass quanto o próprio Mad Max.


Estrada da Fúria é uma nada convencional metáfora sobre o papel (ou papéis) das mulheres na sociedade. Sobre o que os homens acham que elas podem ou não podem fazer. E a resposta delas a respeito.
 Mas por que valorizar tanto as mulheres numa franquia tão associada ao mundo dos homens? Miller revelou que ele não tinha outra alternativa além de se tornar feminista, uma vez que ele estava cercado por tantas mulheres marcantes em sua vida.


Motivo de todo o conflito, as Cinco Esposas mostram que não estão ali apenas para compor a paisagem. Cada uma tem seu momento para mostrar que são pessoas de carne e osso, uma tão diferente da outra. A mais interessante delas é a Splendid  Angharad, de Rosie Huntington-Whiteley. Ela é um tipo de líder entre as esposas, uma referência por sua determinação e provavelmente a inspiradora para que todas fugissem. É um papel cheio de dignidade e fúria, que a atriz interpretou com apetite. Muito diferente de sua atuação em Transformers 3, em que ela não passava do interesse sexual do mocinho, com a câmera passeando por seu corpo de modelo, num papel completamente irrelevante. Destaque também para a presença das Vuvalini, as motoqueiras nômades, cheias de atitude, experiência e conhecimento.


Estrada da Fúria é um filme feminista na medida em que tenta mostrar a igualdade entre homem e mulher pela parceria Furiosa/Max. E mostra mulheres lutando lado a lado para serem reconhecidas como iguais,  procurando acabar com pensamentos de superioridade masculina nem que seja na bala. Como aqui as mulheres estão em desvantagem, elas precisam tomar as decisões mais difíceis. A coisa caminha muito bem nesse sentido em grande parte do filme. Mas em sua meia hora final, ele derrapa. E feio.


Duas decisões vitais foram tomadas na trama. Fugir da Cidadela e fazer o caminho de volta. A primeira decisão foi um risco que Furiosa e as esposas resolveram correr. Elas estavam sozinhas nessa aposta. Então Max e Nux entraram na jogada, por acidente. Primeiro para atrapalhar. Depois para ajudar. Então chegou o momento em que a verdade foi revelada: o Lugar Verde era uma utopia. Furiosa e as outras mulheres decidiram se arriscar mais uma vez, atravessando o deserto de sal. Max chega e propõe algo diferente. Um novo tipo de risco, mas com uma recompensa mais concreta. A ideia estúpida das mulheres deveria ser trocada pela ideia mais consistente do cara. A ideia de voltar para a Cidadela não deveria ter sido de Max, mas de alguma das mulheres, ou da própria Furiosa, depois de ver seu sonho desfeito. E caberia a Max acompanhá-las ou não nesse retorno.
Outro momento que enfraqueceu toda a bela construção da jornada das personagens femininas foi que, sim, no final, o mocinho salvou a mocinha. Max salvou a vida de Furiosa com aquela transfusão de sangue. Alguém poderia dizer que foi um momento de generosidade, de reconhecimento da igualdade entre os gêneros pela doação, literalmente, entre parceiros de luta. A própria Furiosa tinha salvo a vida de Max antes, quando ela impediu que ele caísse do caminhão de guerra. O problema é que Furiosa salvou Max num momento em que várias coisas estavam acontecendo. Ela poderia ter salvo Max, assim como qualquer um, porque todo o grupo em fuga estava bastante ocupado e em perigo. Mas na cena da doação, só havia Furiosa para salvar. Não sei como George Miller poderia ter resolvido a recuperação de Furiosa depois da facada. Mas aquela cena foi um vacilo, deixou uma má impressão.


O final propriamente dito, o retorno à Cidadela, eu não curti muito. Entendam: o retorno foi uma das grandes sacadas do filme. Mas o problema foi a resolução fácil. Eu diria até preguiçosa. Depois de uma lógica interna daquele universo construída com tanto esmero, aí vêm um final que é praticamente uma festa de otimismo. Furiosa e seu grupo são aceitos de volta sem qualquer tipo de retaliação. O estado de medo de Immortal Joe envolvia relações espirituais. Claro que existia ali muita gente que era forçada a participar daquela sociedade. Mas havia os crentes também, os outros filhos do pai morto. Os mais fiéis no mínimo buscariam vingança. Poderia acontecer uma guerra civil entre os habitantes da Cidadela, entre fiéis e descontentes.
Mas eu entendo esse final mais genérico e otimista. Essa é uma concessão ao se fazer um blockbuster. E Miller tinha conseguido fazer tantas coisas menos convencionais ao longo do filme, que é até perdoável. Eu não queria nada cínico. Porque, afinal, esse é um filme generoso, que fala no valor da vida e em sua criação, apesar desse mundo ser tão brutal, apesar de acontecer tanta desgraça. O filme emociona, mas não é piegas. Eu queria que fosse assim até a última cena.


Resta saber se a excelência do filme irá influenciar Hollywood no futuro. Estrada da Fúria é uma conquista em si, uma obra estética e filosoficamente arrojada. Procura se conectar com o grande público, mas também quer desafiá-lo a pensar de maneira diferente sobre alguns temas importantes. Para os outros diretores, é um tapa na cara. O recado é simples: um filme pode ser insano e delicado ao mesmo tempo. Deve-se ter um pouco mais de ousadia na hora de elaborar a ação e o espectador precisa se importar com a jornada dos personagens.    
     


Será que Estrada da Fúria vai se tornar um game changer? Porque nenhum outro game changer recente (A Supremacia Bourne, para filmes de ação; O Cavaleiro das Trevas, para filmes de super-heróis, por exemplo) meteram o dedo de fato na ferida. As conquistas dessas produções são mais de forma. Mas a revolução de Estrada da Fúria é mais completa. É de forma e conteúdo. Por isso, é mais incômoda. Hollywood é muito machista. Mesmo com todos os avanços sociais, mesmo com o sucesso de filmes como a franquia Jogos Vorazes, Gravidade e Frozen, ainda tem muito executivo de estúdio que acha que filme de ação não é lugar de mulher, mas se ela estiver de biquini tudo bem.  
Agora como é maravilhoso testemunhar o nascimento de um clássico do cinema.

Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015), de George Miller, 120 min., Warner