Quando
Bruno terminou de ler a revista em quadrinhos, sua cabeça ainda latejava. Era o
último número de uma antiga edição de Watchmen.
Ele
estava em seu quarto, a sós, numa tarde quente de terça-feira. Estava estirado
na cama, com o travesseiro dobrado, aliviando o pescoço.
Ficou
alguns minutos com a revista fechada nas mãos, apoiada na barriga. A capa o
hipnotizava. Todo aquele sangue sendo derramado num grande relógio de
ponteiros, como o Big Ben, em close.
Até que
ele voltou à realidade. Virou para o lado e pegou o celular no
criado-mudo para conferir as horas.
Eram
quatro e três.
Puta
que pariu. Não fiz uma linha do meu dever de casa, pensou ele.
Levantou-se
rápido, deixando a revista sobre a cama.
Pegou
a mochila no chão, e sentou-se na mesa de estudo.
Estava
prestes a tirar livros e cadernos da mochila, mas parou de repente.
Não
ia adiantar abrir livro nenhum. Sua cabeça latejava. E mesmo que ela estivesse
cem por cento, Bruno não parava de pensar nos personagens, na trama e na forma
como ela foi contada em Watchmen. Aliás, tudo isso foi a causa da
dor de cabeça.
Ele
precisava conversar com alguém sobre o que tinha lido.
Poderia
ligar o computador e entrar no Facebook, no Skype,
ou em alguma sala de bate-papo sobre quadrinhos que frequentava. Mas seria
frustrante. Ele estava excitado demais. Não queria teclar. Não queria falar ao
microfone, nem usar a webcam. Queria conversar com alguém cara a cara.
Ele
sabia exatamente quem seria essa pessoa.
Se
saísse de casa naquele momento, teria de voltar em menos de duas horas.
Geralmente, sua mãe chegava do trabalho às seis. O pai chegava mais tarde.
Levaria
o maior esporro por não ter feito o dever de casa. Mas o esporro seria pior,
talvez com direito a castigo, se sua mãe não o encontrasse bem quietinho na
sala ou no quarto.
Portanto,
ele não podia perder tempo.
Levantou-se
da cadeira, abandonando a mochila no chão.
Vestiu
outro short, outra camisa e calçou os chinelos.
Deixou
a revista sobre a cama, sem medo. Bruno não tinha nenhuma irmã ou irmão,
de qualquer idade, para estragá-la.
Pegou
a carteira, o celular e suas chaves no criado-mudo. Desligou o ventilador de
teto.
Não
teve vontade de ir ao banheiro.
Foi
até a cozinha, abriu a geladeira e tomou um copo de água. Aproveitou
também para partir e comer a primeira fatia do bolo que Carmem, a diarista,
tinha preparado naquela tarde.
Conferiu
novamente as horas e saiu de casa.
Ele
morava num prédio aparentemente pequeno, com seis andares acima do nível da rua
e seis abaixo. Na verdade, existiam ali seis apartamentos por andar, num total
de setenta e duas famílias de moradores. “Que lata de sardinha”, disse Bruno a
si mesmo, certa vez, ao pensar no assunto e fazer os cálculos de cabeça.
Mas
agora sua cabeça não funcionava direito. Ainda assim, ele a forçava por
considerar que valia a pena. Precisava manter as ideias vivas na mente, apesar
da dor.
Ele
morava no terceiro andar. Como não havia elevadores, desceu as escadas
meio às pressas.
Chegando
ao térreo, encontrou o zelador, seu Jonas. Ele trabalhava durante o dia,
circulando pelas dependências do prédio.
“Sua
mãe não vai gostar dessa sua saída.”
“Vou
na farmácia. Ela mandou.”
“Sei.”
“É
verdade.”
O
sorriso largo de Bruno camuflava seu pensamento. Cuide sua vida seu
puxa-saco dos infernos.
Bruno
havia esquecido que corria o risco de ser dedurado por aquele infeliz.
Mas
agora não tinha mais volta.
Foi
até a parede, acionou um botão e ouviu dois estalos elétricos,
simultâneos. Atravessou o portão interno do prédio, em seguida, o externo, e
ganhou a rua.
O
zelador acompanhou todos os seus movimentos.
Aquele
era um bairro onde morava gente de classe média. A maioria sem grana sobrando.
Apenas uns poucos com alguma grana para gastar. O trânsito era barulhento.
Pedestres se equilibravam entre calçadas estreitas e o asfalto. Existia um
intenso comércio formal e informal.
Bruno
caminhava rapidamente, desviando-se das pessoas com habilidade, mesmo que a
cabeça latejando tentasse desequilibrá-lo.
A
partir de certo momento, ele não conseguia parar de pensar na figura do Dr.Manhattan,
um dos personagens de Watchmen.
Se
o Dr.Manhattan e o Superman se enfrentassem,
seria uma luta épica. Seria demais ver o quase sempre tranquilo kryptoniano e o
quase sempre indiferente doutor em ação, um contra o outro. Afinal, quando os
dois se irritam, coisas muito sérias acontecem.
O Superman é
um alienígena com poderes de um deus, graças à sua adaptação ao nosso sol,
jovem e amarelo. O Dr.Manhattan é um deus criado pela Ciência,
pelo homem, mesmo que por acidente. Quem venceria? Talvez essa luta não tivesse
fim. E para a sobrevivência da humanidade, uma hora, teria que ser travada fora
da Terra.
Bruno
achou estranho, até deu risada, ao perceber que estava falando como
um de seus professores, ainda que o assunto fosse quadrinhos.
A
cabeça doía um pouco mais toda vez que elaborava um raciocínio. Era melhor não
forçá-la.
O
lugar aonde estava indo não ficava longe. Bruno seguia seu rumo na esperança de
chegar logo, começar a falar e o aperto no cérebro diminuir.
Realmente,
não demorou tanto.
Bruno
parou de andar, e fixou os olhos num ponto do outro lado da rua. Era uma
fachada modesta. O letreiro suspenso dizia: Galileu - livros usados,
xérox, impressão, serviços de internet.
Tirou
o celular do bolso do short. Passou-se meia hora desde sua saída de casa.
Esperou
o trânsito de mão dupla melhorar e atravessou a pista, apressado.
Já na
porta do sebo, ainda caminhando, viu alguns livros numa banquinha de madeira,
do lado de fora. Estavam à venda por quatro reais e noventa e nove. Não
quis conferir nenhum deles.
Ele
entrou.
O
lugar era estreito. Cheio de livros nas paredes e no chão. Três ou quatro
clientes estavam ali, observando as lombadas, virando as páginas, lendo.
Bruno
passou por algumas pilhas de livros e duas pessoas, e foi para os fundos do
sebo. Até encontrar um cara sentado atrás de um balcão, ao lado do único
computador do lugar.
Ele
estava de cabeça baixa, lendo um livro de Stephen
King. O pistoleiro.
O
cara levantou a cabeça antes de Bruno parar na sua frente. Sorriu com os lábios
e fechou o livro, marcando a página com o polegar.
“Tô
com uma puta dor de cabeça”, disse Bruno.
“Olha
a boca, garoto.”
“Desculpe.”
O
cara se chamava Marcelo. Ele era o dono do sebo.
“Conhece Stephen
King?”
“Já
ouvi falar.”
“Você
precisa ler os livros dele. São viciantes.”
“Não
tenho saco.”
“Eu
sei que ainda têm muitos quadrinhos bons pra você ler, mas tem muita ficção
legal também.”
“Prefiro
investir nos quadrinhos.”
“Esse
aqui mesmo. É o primeiro livro de uma série, A torre negra. No
total, são sete. Aliás, oito. Foi lançado um recentemente. Na verdade, o oitavo
não é o último. Fica lá pelo meio da saga. Enfim, faz tempo que eu queria ler.
Agora vou encarar um atrás do outro.”
Bruno
sempre tentava adivinhar quantos anos Marcelo tinha. Ele não aparentava ser tão
velho. A magreza e as camisas xadrez ou de super-herói ou de banda de rock
dificultavam um palpite melhor.
Bruno
estava impaciente com a conversa de Marcelo. Este percebeu e rapidamente mudou
de assunto.
“Mas
me diga, veio procurar o que hoje?”
“Quero
apenas conversar. Sobre Watchmen.”
“Você
terminou de ler.”
“Sim.
E é por isso que minha cabeça tá doendo.”
“Quanto
anos você tem, Bruno, treze, quatorze?”
“Treze.”
“Você tá
muito novo pra ler Watchmen, cara.”
“Tá
me chamando de retardado, Marcelão?”
“De
jeito nenhum. Mas na sua idade, eu lia o X-Men de Chris Claremont. Na época, eu
nem sabia quem era ele, que eram os artistas que trabalhavam com ele. Apenas
curtia as estórias e os desenhos. Parecia novela das oito. Só que uma novela
com muita porrada, destruição e mortes. Era uma coisa bem mais escapista.”
“Escapista?”
“A
gente lia apenas pra se divertir.”
“Já
li algumas revistas atuais da DC e da Marvel que
são bem divertidas.”
“Mas
é diferente. De uns quinze, dez anos pra cá, os quadrinhos ficaram muito
sombrios.”
“Watchmen é
dos anos oitenta.”
“Eu
sei, mas...”
“Boa
tarde, amigo”, disse um cliente para Marcelo, interrompendo a conversa. “Você
teria alguma edição de bolso de Viva o povo brasileiro?”
“Com
certeza. Só um momento.”
Marcelo
tirou o polegar de dentro do romance, marcando a página com uma régua. Depois
fechou o livro, deixando-o no balcão. Levantou-se para levar o cliente
até a estante lateral. Os dois ficaram de costas para Bruno.
Este
aproveitou para checar a seção de quadrinhos, na estante oposta, ali perto
dele, na altura de sua perna.
Olhou
para baixo, dobrou os joelhos e curvou-se para alcançar três ou quatro pilhas
de revistas.
Começou
a vasculhá-las. Eram edições antigas e recentes. Cebolinha, Mônica,
Pato Donald, Mickey, Tex, Dylan Dog, Wolverine, Batman, Lanterna Verde,
Homem-Aranha, Hulk entre outras.
As
edições recentes da DC e da Marvel chamaram
sua atenção. Ele endireitava o corpo toda vez que as folheava. A
esperança era de que algumas delas formassem uma estória completa. Porém, numa
rápida checagem, viu que estava sem sorte. Costumava baixar muita coisa da
internet para ler no computador. Mas ter uma revista em quadrinhos nas mãos era
muito mais prazeroso. Era diferente de jogar videogame, de assistir a um filme.
Provocava nele um estranho fascínio. Como personagens estáticos podiam ganhar
tanta vida? Bruno adorava curtir quadrinhos deitado na cama, a sós, em
silêncio. Um momento apenas dele, desconectado de tudo, de todos.
De
repente, a dor apertou no alto da cabeça.
Bruno
fechou os olhos e parou de folhear uma revista. Logo depois, abriu-os e
respirou fundo. Colocou a revista na estante e tirou o celular do bolso.
Restava quase uma hora para sua mãe chegar em casa.
Voltou-se
para trás. Marcelo ainda estava ocupado com o cliente.
Bruno
tinha pensado que conversar com alguém cara a cara ajudaria a diminuir a dor.
Mas o esforço da caminhada acabou piorando-a. Essa era a verdade.
Resolveu
ir embora.
Desta
vez, havia somente pilhas de livros como obstáculos, sem ninguém pelo caminho.
Olhou
em direção a Marcelo.
Numa
pausa da conversa com o cliente, Marcelo virou a cabeça.
“Já
vai?”
“Minha
mãe tá me esperando.”
“Volte
amanhã pra terminarmos o papo.”
“OK.”
“Até,
garoto.”
“Até.”
Bruno
odiava quando Marcelo o chamava de garoto.
Ao
sair, deparou-se com alguém vindo da rua.
Era
Dênis, o único funcionário do sebo. O cara conseguia ser mais magro do que
Marcelo. E talvez mais nerd também. As discussões entre os
dois podiam ser divertidas. Um querendo mostrar mais conhecimento sobre filmes,
séries de TV, quadrinhos, games e livros do que o outro. Bruno não entendia
metade do que falavam. Dênis tinha vinte e dois anos. Bruno sabia com certeza.
Afinal, havia perguntado ao próprio, uma vez.
“E
aí, Bruno?”
“Tudo
certo.”
“Já tá
de saída?”
“Sim.”
“Terminou
de ler Watchmen?”
“Nem
me fale.”
“Deu
um nó na sua cabeça.”
“Nem
me fale.”
***
Umas
quatro horas depois, por volta das nove da noite, Bruno estava na frente do computador.
O PC ficava num rack ao lado da mesa de estudo. Ao conseguir
voltar para casa antes da mãe, Bruno se livrou da encrenca maior. Mas teve de
ouvir um pequeno discurso sobre Direitos e Deveres. Terminado o jantar, ele foi
para o quarto fazer o dever de casa, mesmo com a dor de cabeça. Ele não contou
à mãe sobre a dor. Ele podia tê-la usado como desculpa para se livrar de
qualquer esporro. Tinha pensado nessa solução ainda à tarde. Porém, também
sabia que correria o risco de sua mãe mandá-lo dormir mais cedo, para
descansar. Então, ele ficaria sem acessar a internet naquela noite. Por isso,
com muito esforço, ele leu os textos que precisavam ser lidos, resolveu as
questões que precisavam ser resolvidas. Sua mãe verificou tudo rapidamente e o
liberou para fechar a porta do quarto.
Bruno
estava no computador procurando informações sobre Watchmen. Depois
de ler os doze números da série, ele estava pronto para saber mais sobre os
personagens, sobre o cara que os desenhara e, principalmente, sobre o cara que
escrevera toda aquela assustadora e fascinante doideira.
A
primeira coisa que fez foi entrar no Google e digitar: watchmen.
Surgiram os resultados mais populares. Foram mostrados links de
fotos e de trailers do filme, que agora, sim, ele assistiria. Clicou no tópico
em português da Wikipédia. Não havia muita informação. Não se
interessou pelos outros sites em português. Dava para ver que se dedicavam
totalmente ao filme. Bruno não quis seguir com a pesquisa. Ele teve outra
ideia.
A
dor de cabeça estava realmente incomodando. A ponto de deixá-lo meio
irritado. Ela ficara pior enquanto Bruno fazia o dever de casa. Depois, ela
diminuiu pouco. Ele poderia desligar o computador e ir para a cama. Continuaria
no dia seguinte. Mas estava obcecado em saber mais sobre Watchmen.
Acreditava que o sofrimento valia a pena.
Então
foi ao seu Favoritos em busca de uma página. Era de uma sala
de bate-papo sobre quadrinhos.
Na
tela de acesso, Bruno se registrou como Dr.Manhattan.
Ao
entrar na sala, viu um monte de nicks, numa coluna lateral.
Não
reconheceu nenhum deles.
Não havia
nenhum relacionado a Watchmen.
Bruno
mal esperou as mensagens aparecerem na tela.
Dr.Manhattan: alguem a fim de tc sobre watchmen?
Rolavam
três ou quatro conversas sobre temas relacionados a quadrinhos. Mas ninguém lhe
dava atenção.
Bruno
se sentiu mais triste do que irritado.
Feiticeira Escarlate: alan moore é um doente, mas eu amo ele
Bruno
sorriu, todo satisfeito.
Dr.Manhattan: eu nunca tinha lido nada como watchmen
Feiticeira Escarlate: moore ja fez muita coisa excepcional,
mas com watchmen ele se superou
Mr.Natural: e big numbers??
Sandman: neil gaiman é mais foda
Dr.Manhattan: o q é big numbers?
Batman: frank miller é o verdadeiro rei
Feiticeira Escarlate: frank miller é um fascista
Valentina: eu tb gosto mais de neil gaiman
Dr.Manhattan: o q é big numbers???
Batman: frank miller tem colhoes
Angeli: big numbers é a suposta obra-prima
inacabada de moore
Mr.Natural: o cara n teve chance de concluir a
serie
Dr.Manhattan: e fala sobre o q?
Angeli: a construcao de um grande shopping numa
pequena cidade da inglaterra
Valentina: deve ser uma chatice
Mr.Natural: aí que ta, é brilhante, roteiro e
arte
Angeli: dos doze numeros em mente, so saíram
dois, alem de um terceiro (nunca publicado) que um fã teve acesso ao material e
divulgou uma versao xerocada na internet
Dr.Manhattan: mas eu quero saber de wachtmen
Feiticeira Escarlate: nada é p sempre, mas vai ser difícil
uma hq superar watchmen, o mundo dos quadrinhos é dividido em antes e depois
dela
Dr.Manhattan: os herois de watchmen n batem muito bem
da cabeça, e ninguem tem superpoderes, a n ser claro o dr.manhattan
Angeli: moore fez tudo aquilo como uma mistura
de homenagem e critica aos super-herois. pessoas comuns q tem a ideia de vestir
fantasias p fazer justiça, mas que na verdade estao extravazando suas próprias
frustrações pessoais. ao mesmo tempo, a gente os admira porque queriamos fazer
o q eles fazem
Dr.Manhattan: eu n queria ser tao deprimido como eles
Angeli: moore leva os recursos da nona arte ao
limite, p mostrar como os quadrinhos podem ser um formato maduro e completo.
ele cria uma estrutura em tres camadas tao integrada com a trama q se torna
praticamente impossível dela existir em outras midias. ela foi pensada como hq
e tem sua melhor expressao em hq
Feiticeira Escarlate: watchmen é o Ulisses dos quadrinhos
Dr.Manhattan: quem é Ulisses?
Feiticeira Escarlate: esquece
Angeli: dr.manhattan, voce descobriu a hq por
causa do filme?
Dr.Manhattan: na verdade tudo começou uns quatro
meses atras. um tio meu (o irmao mais novo de minha mãe) resolveu me dar duas
caixas pesadas com todos os seus quadrinhos. as vezes ele me falava de como era
legal ler quadrinhos, mas eu nunca dava muita importancia. meu tio ia se casar.
no dia em q veio com as caixas, ele me disse q n ia ter espaço no novo
apartamento p guarda-las. ele tb me disse p dar uma chance ao q havia nelas, q
ia ser divertido. as caixas ficaram num canto do meu quarto por um bom tempo.
ate q num sabado de chuva forte eu tava jogando videogame e faltou energia.
minha mae me proibiu de sair de casa. fiquei sem nada p fazer. claro q eu podia
ter ficado na cama ouvindo musica no celular. mas resolvi abrir as caixas.
havia revistas grandes, pequenas, albuns, encadernados. comecei a ler uma
revista do superman: a primeira parte de ´entre a foice e o martelo´. depois li
a segunda parte e finalmente a terceira. e fui ler outra revista, e mais outra,
e mais outra. e durante as semanas seguintes meio q peguei uma febre por quadrinhos.
eu praticamente so fazia le-los no meu tempo livre. ate q um mes atras eu
encontrei no fundo de uma das caixas os tres primeiros numeros de watchmen.
depois de devora-los e de minha cabeça doer pela primeira vez (ela ta doendo
agora mesmo pq hj terminei de ler a coisa toda) vasculhei as caixas em busca de
mais watchmen e nada. entao resolvi caçar numero por numero ate completar essa
ediçao antiga em doze partes. mas numa rapida pesquisa pela internet logo vi q
seria complicado. pela falta de grana e pela dificuldade em achar todos os
números. acabei baixando muitos deles e meus pais arremataram p mim os quatro
ultimos em sites de compra e venda
Angeli: dr.manhattan, qtos anos vc tem?
Dr.Manhattan: p q todo mundo me pergunta isso??
Dr.Manhattan: treze, treze
Feiticeira Escarlate: oh boy
Angeli: inocencia perdida, sabedoria adquirida
Dr.Manhattan: q diabo vc ta falando, cara???
A
cabeça de Bruno parecia que ia explodir. Ele não pensou duas vezes: em questão
de segundos, deu dois cliques na tela e desligou o computador.
Precisava
urgentemente de um banho morno.
Abriu
a porta do quarto dele. O corredor não estava totalmente escuro. De um lado, a
porta do quarto dos pais estava fechada, com a luz acessa por trás dela. Sua
mãe devia estar na cama com o laptop no colo. Do outro lado, havia reflexos da
televisão na parede da sala. Bruno avançou de mansinho e flagrou o pai
cochilando no sofá. Não o incomodou, retornando em direção ao banheiro.
Foi
um banho demorado.
Já
com a luz do quarto apagada, pegou o celular e conferiu as horas pela última
vez. O sono veio logo. O esgotamento superou a dor de cabeça.
***
Quando
o perigo surgiu, sua cabeça não estava doendo mais. E sim, seu estômago.
No
dia seguinte, uma quarta-feira de mormaço, Bruno voltava da escola, morto de
fome.
Assim
que descera no ponto de ônibus, já com a mochila nas costas, andou mais alguns
metros até a próxima esquina, e deixou a avenida estreita para entrar na
rua onde morava.
Não
conseguia pensar em nada além do almoço.
Sabia
o que teria para comer. Sua mãe sempre preparava tudo na noite anterior.
Estava
empolgado. Ela tinha feito uma lasanha de queijo e presunto com bastante molho
vermelho.
“Bruninho”,
gritou uma voz feminina.
Ele
parou de andar e virou-se para trás, num reflexo.
Recuperando-se
do susto, reconheceu quem o chamara.
Era
Mariana, Mari, uma vizinha, com um sorriso franco.
Ela
também voltava da escola. O uniforme era diferente do seu. Ela não carregava
nenhuma
mochila. Apenas um caderno grande, de capa dura, envolto no braço.
“Dei
sorte em te encontrar. Esqueci minha chave de casa. Minha mãe tá chegando do
médico. Vou esperar no playground”, disparou ela, aproximando-se.
Aquele era o horário de descanso de seu Jonas, o zelador. Encontrá-lo pela
portaria seria praticamente impossível.
Mari
chegou bem juntinho de Bruno, mas não parou de andar, obrigando-o a se mexer,
até alcançá-la, os dois lado a lado.
“Eu
ia interfonar pra algum morador abrir os portões. Seria uma chatice. Mas você
me salvou. Meu herói”, completou ela, fazendo Bruno sorrir timidamente e olhar
para o chão.
Era
comum Bruno ficar nervoso na presença de Mari. Ele estudava mil vezes as
palavras antes de abrir a boca. Ela era bonita, gostosa, legal e tinha
dezesseis anos. Ou seja, uma ameaça completa à sua paz interior.
Para
seu espanto, ele constatou o óbvio: até agora, não havia dito nada, sequer
um oi.
Pense,
Forrest, pense.
Mari
falava que estaria perdida se a mãe não a socorresse, naquela hora do almoço. O
irmão caçula já tinha saído para a escola. O pai só chegaria do trabalho à
noite. Ela poderia ir para a casa de uma amiga, ali pelo bairro, tudo bem. Não
seria nada desagradável. Mas ela estava louca para terminar de ler o romance
policial que vinha devorando na última semana, A rainha do castelo de ar. Ela perguntou a Bruno se ele sabia quem
era Lisbeth Salander. Ele balançou a
cabeça, negativo.
Por
fora, Bruno era um ouvinte atencioso. Por dentro, um pensador angustiado.
Porra,
moleque, fale alguma coisa.
“Você
pode esperar sua mãe lá em casa.”
Mari
o encarou e sorriu.
“Você é
tão fofo... Tô precisando mesmo de um copo de água gelada.”
Outra
vez, Bruno sorriu timidamente, mas agora manteve o olhar firme.
Sua
cabeça estava confusa. Ele mal podia acreditar na atitude que tivera. Mas não estava
exatamente satisfeito. Afinal, estaria a sós com Mari, na casa dele. Sua
coragem já tinha se esgotado ou ainda teria fôlego para mais, muito mais?
A dúvida começava a torturá-lo.
Os
dois chegaram ao portão externo do prédio.
Bruno
meteu a mão no bolso da calça. Tirou suas chaves. Selecionou a que serviria.
Executava cada etapa com calma, controlando a respiração, para mostrar-se
seguro.
Estava
de cabeça baixa quando notou o silêncio. Mari tinha parado de falar.
Observou-a.
Os
olhos dela estavam petrificados.
De
repente, tudo fez sentido. Bruno sentiu alguém se aproximar às suas costas.
Virou-se
para trás. O receio se transformou em pavor.
Três
detalhes lhe chamaram a atenção: os olhos mortiços do sujeito, o bigodinho ralo
e a faca de mesa serrilhada.
“Celular.”
Nada
mais foi dito.
Não
houve ameaças aos berros, nem gestos violentos.
A
fome de Bruno foi substituída por uma queimação no estômago.
A
mochila ficou um tanto mais pesada. Os ombros mais rígidos. A camisa grudou de
vez nas costas molhadas de suor.
Mari
agiu primeiro. Trocou o caderno de braço e meteu a mão no bolso traseiro da
calça, passando o celular adiante.
Em
seguida, Bruno entregou o seu.
O
sujeito guardou um e outro num saco plástico de supermercado. O saco foi parar
dentro do short, na virilha. O sujeito nunca tirava os olhos de Bruno e Mari.
Bruno
imaginou que o sujeito sairia correndo depois de feito serviço. Mas não foi o
que aconteceu.
Por
um brevíssimo momento, o sujeito fixou os olhos em Mari. Não dava para saber o
que ele estava pensando. O rosto não revelava nada.
Veio
o susto: o sujeito avançou sua mão livre até o seio de Mari, e começou a
apalpá-lo.
Ignorando
o perigo, Bruno tinha acompanhado o movimento do braço, sem acreditar no que
testemunhava.
Mari
mal se mexia. Não dera um pio.
Mas
Bruno não levantou a cabeça para ver como ela estava, seu semblante. Ele
não conseguia tirar os olhos da mão no seio.
O
sujeito apertava, e girava a mão, apertava, e girava mais uma vez.
Bruno
teve um pensamento de que logo se envergonhou: queria estar no lugar do outro,
sem dúvida.
Novo
susto. O sujeito recolheu a mão, deu as costas e foi embora.
Bruno
voltou-se imediatamente para ele.
Viu,
à medida que o sujeito se afastava, a faca de mesa ser levada à frente oculta
do short e desaparecer.
Bruno
não foi conferir se Mari estava bem.
Ele
não tirava os olhos do sujeito, caminhando para longe.
O
estômago não doía mais. Não havia mais fome, nem queimação.
Bruno
sorriu levemente com os lábios, numa mistura de revolta e ironia, e sussurrou:
“Watchmen”.