Leiam a segunda versão do primeiro capítulo de uma novela
juvenil que estou escrevendo, a convite da autora Rita Maria Félix e baseada em
um conto seu. Conheçam Lottar Gan Amon, um menino negro de nove anos, filho de
uma feiticeira e de um devorador de almas. Lottar vive num país onde ciência e
magia convivem numa relação tensa. Num período de guerra, com seu pai
desaparecido no front, nosso protagonista tenta sobreviver com a mãe a tempos
difíceis. Ele acaba descobrindo que o jardim mágico de sua família pode guardar
a chave de um poderoso segredo.
Capítulo 1 - Olhos brancos
O local era uma clareira na mata, atrás da escola,
à beira do rio. Um número razoável de colegas estava presente. Todos se
atrasariam para o almoço.
O adversário da vez se chamava Mok.
"Vou quebrar todos os seus ossos", disse
ele.
"E eu vou te transformar num monte de
pedrinhas para jogar no rio. Vou praticar bastante meus arremessos para quicar
na água", disse Lottar.
Mok apertou o rosto, enfurecido.
Lottar mantinha-se firme. Mas, no fundo, estava
morrendo de medo. Afinal, Mok era um filho de gárgula. Ele era feito de pedra,
tinha uma cabeça de dragão e asas de morcego, ainda curtas. E o pior, quando
Mok ficava de pé, tinha o dobro do seu tamanho.
De repente, Mok mudou sua expressão tensa. Agora
ele sorria, cheio de malícia.
"Você é um covarde. Assim como seu pai, aquele
traidor."
"Ninguém chama meu pai de traidor!"
Esse era o ponto fraco de Lottar. O motivo das
brigas na escola e na rua.
Lottar era um menino negro de nove anos.
Ele vivia repetindo para si mesmo. Não sou
um valentão, não sou um valentão, não sou um valentão. Mas não
adiantava muito. Era só ele ser provocado, que aceitava o desafio. Quando sua
reação era mais explosiva, tentava resolver o problema na hora do recreio, em
algum canto isolado da escola. Corria o risco de a disputa ser flagrada por um
funcionário ou mesmo um professor. Como já acontecera antes. Então, ele e seu
desafeto acabavam indo para a diretoria, e cada um recebia um pergaminho azul,
advertências mágicas que apenas as mãos de um responsável conseguiriam abrir.
Caso não fossem entregues a estes no prazo de vinte e quatro horas, os
pergaminhos desapareceriam no ar, para reaparecerem na mesa do diretor. Cinco
destas advertências durante o ano letivo resultavam em expulsão.
Mais da metade do ano tinha se passado e Lottar já
somava três pergaminhos em sua conta. Não queria um quarto. Por isso, a briga
daquele dia aconteceria fora da escola, depois da aula.
***
Era o início de uma tarde de segunda-feira abafada,
calorenta.
Lottar contava com o fato de ser neto de
feiticeira, e filho de feiticeira, que agora também era uma vampira.
Além de sua agilidade, punhos, braços e pernas, ele
usava certos truques mágicos, ensinados pela mãe, para atacar e defender-se.
Era o máximo que ela fazia. Para segurança dele e de outros. Lottar ainda não
tinha idade para aprender encantos mais poderosos. E também era uma maneira de
evitar mais problemas. Na verdade, só o fato de Kaline praticar magia já era um
grande problema. Como agora era uma vampira, ela estaria proibida por lei de
praticar coisas de feiticeira. Mas Lottar era a única pessoa
que sabia de sua nova condição. Ela o fizera prometer que aquele seria o maior
segredo dos dois, entre mãe e filho. Ela não foi explícita sobre as terríveis
consequências do crime. Não havia outra palavra para classificar a
situação, Kaline tinha consciência disso. Porém Lottar logo entendeu que ele
podia ser afastado da mãe e deixar a casa onde morava para sempre. Ele nunca
permitiria que essa catástrofe acontecesse. A avó de Lottar tinha falecido
havia alguns anos. Fora os pais, ele não tinha mais ninguém no mundo.
Os truques mágicos que Lottar sabia eram de
relativo poder. Feitiços monossilábicos. E estavam ficando manjados. O
adversário da briga seguinte conhecia os truques anteriores, conseguindo assim
anulá-los ou escapar deles. A cada nova briga, Lottar tinha que ter um outro
truque escondido na manga. Estava ficando cansado disso. E sua mãe irritada.
"Ok, ok. Vou te ensinar mais um. Não quero ver filho meu apanhando por aí.
Já basta tudo que passamos", ela não cansava de dizer.
O truque de paralisar alguém era algo novo.
Lottar usou primeiro sua agilidade para cansar Mok.
Punhos, braços e pernas estavam fora de questão. Lottar não ia bater, agarrar
ou chutar em pedra. A única arma de Mok era seu tamanho, sua força. Lottar
precisava apenas ficar fora de seu alcance até o momento certo. Usar o truque
mágico quando a pessoa estava cansada, confusa, ou enfraquecida, prolongava seu
efeito.
De repente, Mok tentou abraçá-lo.
Lottar fugiu.
Mok quase agarrou sua canela.
Lottar rolou na grama, sujando-se.
Mok não aguentou o peso do próprio corpo e caiu,
apoiando-se com as mãos e os joelhos no chão.
Ele ficou numa posição ridícula.
Alguns riram.
Quando se levantou, furioso, Mok ficou meio
desorientado.
Lottar já estava de pé, pronto. Só esperava por
aquele contato visual.
Ele balançou as mãos para frente, apontando para
Mok, e com a pronúncia que mais achava correta gritou: "Fic!"
Nenhuma faísca, luz ou raio de qualquer cor foi
notado.
Mas todos logo perceberam que o feitiço tinha dado
certo.
Mok apenas disse "Putz" e caiu duro na
grama, de costas.
Na queda, sofreu rachaduras no corpo e quebrou a
ponta da asa.
Muitos ficaram chocados.
Inclusive Lottar. Os pais de Mok gastariam uma
boa grana num feitiço que consertasse tudinho, pensou ele.
"Eu desisto! Eu desisto!", gritou Mok.
Ele estava estirado no chão, de barriga para cima,
imóvel. Apenas conseguia mexer a boca. Sentia dor, mas gárgulas não conseguiam
chorar.
Lottar estava fora do seu campo visual.
Respirava pesadamente. O peito subia e descia. O
braço tinha alguns arranhões, mas nada grave. Não escorria sangue.
A plateia de meninas e meninos, ou seja, seres de
todo tipo, estava parte satisfeita, parte decepcionada, parte apreensiva.
O olhar de Lottar era assustador.
"Quero ir para casa! Quero ir para
casa!", continuou Mok.
Lottar poderia liberá-lo. Provavelmente, aquele ali
não ia incomodar mais. Acontecera isso com cada um de seus desafiantes. Até
agora ninguém tivera a ideia de atacá-lo em grupo. Ainda bem que não,
pensou ele, certa vez. Com toda essa história de seu pai, dos boatos, só lhe
sobrou dois amigos de verdade. Dora, uma goblin, era uma colega de turma.
Berto, um curupira, era um vizinho. Eles se ofereceram para ajudar no que
pudessem. Mas Lottar não queria envolver os amigos. Prejudicá-los ainda mais.
Lottar até percebia alguma simpatia no rosto de outros colegas, de outros
meninos de sua rua, mas ninguém se aproximava dele.
"Meu pai vai acabar com você! Vai sim!",
gritou Mok.
Lottar mordeu as mandíbulas e fungou. O coração
estava acelerado. Ele olhava para o vazio.
Alguns na plateia seguraram a respiração.
Não tem jeito,
pensou Lottar. Vou ter que fazer de novo.
Ele fechou os olhos e procurou acalmar-se. Assim
como o pai lhe ensinara.
"O segredo é controlar as batidas do
coração", dizia Victor, nas primeiras tentativas de Lottar. "E para
isso, você tem que imaginar não como o mundo é, mas como deveria ser."
Victor o havia treinado, um treinamento ainda
incompleto, oferecendo-se como cobaia. Apesar da pouca idade de Lottar, o pai
achava que, quanto mais cedo o filho lidasse com seu dom, menos
doloroso seria suportá-lo.
Desta vez, veio à mente de Lottar a imagem dele, do
pai e da mãe juntos, na praia, num domingo ensolarado, de muito vento. Não
havia guerra contra a Câmbria. Sua mãe não se tornara uma vampira. Até sua avó
ainda estava entre eles. Ela apareceria de surpresa, carregando uma cesta de
sanduíches de atum com azeitonas, seus preferidos. Sua avó os preparava com um
toque especial e secreto. Talvez ali tivesse um pouco de magia. Eram gostosos
demais.
O coração de Lottar estava respondendo. Diminuindo
o ritmo. Voltando ao normal.
Lottar sentiu que estava pronto. Respirou fundo.
Gemeu baixinho.
Alguém até poderia pensar que ele estava passando
mal, que precisava ir ao banheiro. Mas não era nada disso. Parte da plateia
sabia. Alguns já viram aquilo acontecer antes.
Lottar abriu os olhos. Suas pupilas escuras tinham
sumido. Havia apenas o branco leitoso.
Uma menina soltou um gritinho de pavor.
Mok continuava deitado e imóvel, todo dolorido. Sem
ter visto nada.
Lottar estava próximo aos pés dele. Começou a andar
sem vacilos. A ausência das pupilas não parecia ser um problema.
Deu uma meia volta até chegar ao topo da cabeça de
Mok.
Quando Lottar entrou em seu campo visual e o
encarou com os olhos totalmente brancos, Mok quis muito fechar os seus. Mas o
esforço foi inútil. As pálpebras não obedeceram à sua vontade.
Lottar se agachou. Seu rosto agora estava a poucos
centímetros do rosto de Mok. A este só restava dizer: "Se afaste de mim!
Se afaste de mim!..."
"Você nunca mais vai chamar meu pai de
traidor", disse Lottar. Sua voz era de criança. Mas a firmeza de suas
palavras tinha o tom de alguém mais velho.
Lottar colocou as mãos negras nas laterais da
cabeça de dragão. O corpo de pedra estremeceu por inteiro. Estava livre do
feitiço, da imobilidade. Mas Mok não teve muita chance de reagir. Ele já estava
dominado por outra força.
Encarar os olhos brancos de Lottar o deixava com um
baita sono.
As pálpebras cinza de Mok ficaram pesadas. Até
fecharem completamente. Mok parecia ter caído num sono profundo.
Então, ele acordou, e veio o susto para
quem acompanhava tudo mais de perto. Os olhos de Mok agora estavam iguaizinhos
aos de Lottar.
Agora foi Lottar quem fechou os olhos. Depois,
tirou as mãos da cabeça de Mok.
Ao abri-los, suas pupilas escuras estavam de volta.
Mas Lottar não parecia se sentir bem. O corpo pendeu
para o lado.
Ele colocou a mão no chão para não cair.
Muitos na plateia ficaram em suspense. Até quem não
o suportava.
Lottar permaneceu na mesma posição por um tempo.
Piscando, procurando enxergar melhor.
Num pulo, ele levantou-se, fez uma careta de dor e
saiu correndo. As pernas estavam meio bambas. Por duas vezes, parecia que ele
ia tropeçar e se arrebentar no chão. Mas conseguiu se recuperar e ir embora.
Em seguida, alguns meninos e meninas voltaram sua
atenção para Mok. O corpo estava imóvel, nem a boca mexia mais. Os olhos
estavam totalmente brancos. Todo mundo sabia qual era o problema. Todo mundo
sabia onde sua alma foi parar.