sexta-feira, 25 de abril de 2014

ULISSES (CONTO)


Imaginei que fosse engano ou um golpe, uma maneira de entrarem no prédio, no meu apartamento e praticarem algum tipo de horror. Fiquei em silêncio depois do brevíssimo interrogatório. A contradição entre a voz muito jovem e a convicção de quem falava me deixou com medo, confuso, hesitante. E também, claro, havia o conteúdo de suas palavras: ele procurava por mim, exatamente. Na dúvida, resolvi não responder mais nada. Fiquei em silêncio e não tirei os olhos do cadarço do meu tênis, mal-amarrado, prestes a se soltar. Do outro lado do interfone, o cara arriscou um: ainda está aí? Então ele disse o nome do meu irmão. Ele perguntou se eu era o irmão mais novo. Não fiquei mais aliviado em ouvir essas informações da boca de um estranho. Pelo contrário. Essa certa intimidade fora de lugar me fez ficar mais desconfiado. A agonia crescente por não saber como agir causou em minha respiração um curto-circuito. Meu peito estufou rápido, mas nenhum ar entrou nos meus pulmões, e apertou-se e uma leve vertigem me obrigou a pender para o lado, e eu à procura do apoio de uma parede ou da mesinha de fórmica da cozinha para não me estatelar no chão. Tudo acontecendo e eu só pensava numa coisa: preciso tossir, tossir. Consegui dar dois passos aflitos, o cadarço do meu tênis desamarrou de vez e quase provocou uma tragédia, e me segurei na lateral da entrada da cozinha. A primeira tosse deu-se violenta, assim como a segunda. Me senti inchado e meus olhos se encheram de lágrimas. Recuperando o fôlego, a consciência de tudo em volta, o contexto da situação com o cara, me senti tão vulnerável, diminuído. Aquilo me enfureceu. Era como se eu estivesse à mercê de um trombadinha. Quando alguém se depara com uma figura dessas, perigosa, sem dúvida, mas tão sem recursos, tão miserável, a posição de vítima pode causar na pessoa uma revolta, por ter de se render a tão pouco. Então um sentimento de fúria emerge e te estimula a cometer uma reação descabida, burra. Pois foi o que fiz. Segurando os azulejos da entrada da cozinha, levantei o corpo, levantei a cabeça em direção ao teto e estiquei minha coluna até ouvir os estalos. Enfrentar. Minha disposição meio cega era de enfrentar. Meu batimento cardíaco desacelerava, mas parecia não querer voltar ao normal, teimando em permanecer um tanto acima da média. Num movimento de raiva, peguei minha perna e arranquei com as duas mãos o tênis desamarrado. Depois peguei minha outra perna e arranquei com as duas mãos o tênis amarrado. Meu corpo equilibrou-se dignamente. Fiquei muito orgulhoso. Ganhei ânimo para cometer minha loucura. Loucura mesmo. A voz do cara era muito jovem, mas não tão jovem para considerá-lo um trombadinha, para que o perigo se mostrasse tão miserável. Aquele era um perigo sem rosto, portanto, sem dimensão. Coloquei os chinelos, abri e fechei a porta da rua e fui descendo as escadas. A fome voltava a incomodar. Ela dera uma trégua durante todo o aperto que eu passara. Mas o que me deixava mais inquieto era a dúvida se eu encontraria ou não o cara lá embaixo. Depois que ele falou comigo, quis saber de mim, e a partir do meu voto de silêncio, eu o ignorei completamente. Eu estava mais interessado em descobrir o que fazer com meu medo, se eu iria entregar-me ou superá-lo. Eu ouvia a voz no interfone, mas não entendia direito o que o cara falava. Ou não queria entender. Até ontem pela manhã, antes de o cara surgir, toda vez que uma pessoa acionava o interfone, à minha procura, deixava bem claro desde o início o que queria, o seu propósito. Fosse um amigo inconveniente que estava por perto e resolvesse fazer uma visita. Fosse um religioso tentando pregar a palavra do senhor e oferecendo leituras de apoio espiritual. Fosse o entregador de uma pizza que eu torcia para que ainda estivesse quente. Fosse o carteiro trazendo alguma correspondência registrada que eu tinha de receber em mãos e assinar. Fosse um vendedor de porta em porta anunciando produtos inúteis de qualidade suspeita. Nada de enganos, muito menos golpes. Assim acontecia havia quase um ano, desde que eu alugara o apartamento. É até meio bizarro. Ser importunado apenas com motivo certo, preestabelecido. Eu já tinha me acostumado a essa realidade. E enquanto eu descia aquelas escadas, continuei a pensar o seguinte: e se a situação com o cara não tivesse nada de novo, fosse mais do mesmo? O coração batendo fora de ritmo queria acelerar um pouco mais. Então a situação poderia ter sido resolvida como em todas as outras, em caso de estranhos? Bastaria a simples recusa a qualquer pedido ou oferta do cara, ou minha descida corriqueira para receber o pacote registrado ou a pizza? Foi aí que a ficha do tamanho de uma tampa de bueiro caiu. Tardia e estupidamente percebi o óbvio, o muito óbvio. A menção ao nome do meu irmão me desestabilizara. Uma armadilha tão velha e conhecida que não devia mais me atingir. Essa minha desatenção para muitas coisas tão na cara sempre o irritou. Certa vez, ele me disse que minha falta de sincronia com o mundo me custaria muito caro algum dia, seria uma fonte de tristeza insuportável, não sabia se para outros, mas com certeza para mim. Quando ele me disse isso, exatamente com essas palavras, eu tinha catorze anos. Ele, dezessete. Nos anos seguintes, sua afirmação cresceu em significado ao me render aos autores que fui descobrir na adolescência: acima de tudo romancistas e contistas, acima de tudo os que tratavam a vida como um campo de batalha, cheio de tédio, frustração, violência e de poucos prazeres nos intervalos, prazeres fugazes, mas suficientes para serem superestimados, endeusados. Mas então quer dizer que minha performance de desespero, a dor do meu corpo perante o cara, ou melhor, perante a voz do cara, não se justificava? Eu não estava nem um pouco convencido disso. Por fim, cheguei ao térreo para ver do que esse cara era feito. Mas acontece que não havia ninguém lá.                          

Nenhum comentário:

Postar um comentário